O fim da neutralidade da rede nos EUA e a discussão em âmbito nacional

O princípio da neutralidade da rede é um dos mais polêmicos e discutidos pontos em escala global quando o assunto é a infraestrutura da rede mundial de computadores e o tráfego de pacote de dados, trazendo à tona argumentos acerca da preservação da liberdade de navegação dos usuários, da defesa da concorrência, bem como do estímulo à inovação e a ponderação dos interesses envolvidos seja do setor empresarial como da sociedade.

É importante destacar que toda a informação transmitida na Internet trafega sob a forma de pacote de dados, sendo que cada um desses pacotes equivale à parte da informação que é fracionada em pequenos blocos quando enviada ao destinatário e viaja de forma separada até o destino final, onde serão recepcionados todos os pacotes de dados e reconstruída a informação, seja ela em formato de textos, sons, vídeos ou imagens para exibição ao receptor. Muitos autores utilizam metaforicamente para ilustrar o funcionamento da Internet o trânsito de uma cidade, onde os caminhões representam os pacotes de dados viajando ao destino por rumos diferentes e as autoridades de trânsito representam os roteadores, responsáveis por orientar os motoristas dos veículos em cada parada sobre qual o melhor caminho para o destino.

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Em suma, a neutralidade da rede visa assegurar o tráfego de pacotes de dados de forma isonômica, impedindo o controle discriminatório de conteúdo entre as pontas da rede (origem e destino) por parte das prestadoras de serviços que tecnicamente possuem tal faculdade. Seguindo a metáfora do trânsito, as prestadoras de serviços funcionariam nesses casos como autoridades de trânsito que poderiam bloquear ou retardar a passagem dos veículos com base no tipo, origem ou destino da carga transportada. Nesse contexto, o princípio da neutralidade da rede pretende garantir ao usuário a liberdade de navegação na rede sem a interferência do provedor de acesso de forma a impedir o bloqueio ou priorização de determinados tráfegos de dados, bem como que as operadoras de comunicação vendam pacotes de internet fracionados.

A legislação americana vedava a referida discriminação de dados desde 2015, quando o então presidente Barack Obama, incluiu como regra ao Ato das Comunicações criado em 1934, a classificação da banda larga como um serviço de utilidade pública, equiparando a Internet à eletricidade e ao telefone fixo e impedindo a degradação do tráfego online de serviços pelas empresas de telecomunicações e demais práticas abusivas. Porém, em meio a muitas discussões e controvérsias, a agência de telecomunicações dos Estados Unidos reviu nesta quinta-feira (14/12/2017) tais regras, revogando a garantia de neutralidade da rede, o que para os defensores de tal medida permitirá a criação de novas formas de negócio pelas operadoras de internet e consequentemente a ampliação dos investimentos em infraestrutura que demanda a grande quantidade de dados criada pelos usuários atualmente.  

No Brasil, o princípio da neutralidade da rede é garantido pelo Marco Civil da Internet (Lei nº. 12.965 de 2014) em seu artigo 3º, inciso IV e no artigo 9º e regulamentado pelo Decreto nº. 8771 de 2016. Contudo, não obstante as diversas discussões à época da tramitação do projeto do Marco Civil da Internet, as empresas de telecomunicações brasileiras já pretendem a retomada da temática, objetivando uma maior flexibilização da neutralidade da rede e a decisão dos EUA pode abrir precedentes nesse sentido, colaborando com as recentes discussões da limitação da Internet fixa no Brasil, o que para alguns críticos contraria o princípio da neutralidade da rede adotado pelo nosso ordenamento jurídico, já que a limitação por franquias de dados representa na prática a limitação do consumo de áudios e vídeos, por exemplo.

Uma reportagem da Folha de S. Paulo publicada no início de dezembro deste ano já mencionava que as operadoras de internet no Brasil somente aguardavam uma decisão da agência americana de telecomunicações para pressionar o presidente Michel Temer a modificar o Decreto nº. 8771 de 2016 que trouxe uma regulamentação mais rígida para o princípio da neutralidade da rede definido pelo Marco Civil da Internet, estabelecendo dentre outras regras que as “ofertas comerciais e os modelos de cobrança de acesso à internet devem preservar uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória.”

Assim como um dos argumentos motivadores da decisão da agência americana de telecomunicações, as operadoras de internet no Brasil defendem que será imposta ainda mais demanda sobre a rede com o surgimento de novas tecnologias como a Internet das Coisas e a Realidade Virtual, o que demandará investimentos em infraestrutura e tratamento prioritário em casos como de cirurgias realizadas via Internet, defendendo que regras rígidas de neutralidade da rede impedem a geração de receitas e, consequentemente, novos investimentos que permitam uma evolução técnica da infraestrutura para atender a demanda crescente de uso de pacote de dados.

Contudo, é importante destacar e suscitar a discussão de que as regras do ordenamento jurídico brasileiro não interferem na possibilidade das operadoras de internet de ofertarem aos usuários diferentes tipos de acesso, fixando para tanto diferentes preços a depender da maior ou menor “velocidade” de transmissão, ou seja, não há impedimento legal para que os provedores de acesso busquem uma remuneração condizente com o serviço ofertado ao usuário, fomentando a livre concorrência, sem, contudo, usar de artimanhas que possam de alguma forma lesar o consumidor como a discriminação ou degradação do tráfego.

Em sentido contrário, a neutralidade da rede é fundamental no que diz respeito à defesa da concorrência e estímulo da inovação dos serviços disponíveis online, já que os modelos de negócios vedados às operadoras de internet pelo Marco Civil da Internet, conforme supramencionado, não impedem o estímulo da livre concorrência, mas sim podem ser instrumentos para a cartelização e, sem dúvida, atentam contra a concorrência entre os serviços disponíveis online ao possibilitar a discriminação de conteúdo ou comercialização fracionada de serviços, bem como representam verdadeira afronta à garantia de preservação da liberdade de navegação dos usuários e o desenvolvimento de uma sociedade inclusiva.

Deste modo, sem a pretensão do esgotamento de todas as argumentações pós e contras ao princípio da neutralidade da rede e, sim, a de trazer a discussão ao contexto atual do cenário brasileiro diante do perigoso precedente norte americano e as discussões das operadoras de Internet sobre a temática, nos cumpre destacar que, embora definitivamente integrado ao ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da neutralidade da rede é controverso em âmbito global e a qualquer momento pode ser suscitado novamente pelos nossos legisladores com o viés de flexibilizar esse importante princípio esculpido pelo Marco Civil da Internet.

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Sobre as autoras:

Andressa Garcia é advogada especializada em Direito Digital e Compliance. Entusiasta da área de Proteção de Dados e Privacidade.

Fabíola Garcia é engenheira de redes formada em Engenharia da Computação pela Faculdade Metrocamp Ibmec. 

Andressa Aparecida Garcia dos Santos

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Advogada especializada em Direito Digital e Compliance. Entusiasta da área de Proteção de Dados e Privacidade.


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